1,99 - Um supermercado que vende palavras
Após estrear no cinema, em 1999, com o excelente "Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos", Marcelo Masagão realizou, em 2001, o não menos brilhante documentário "Nem Gravata, Nem Honra" - que recebeu uma distribuição ainda pior do que a de seu primeiro longa. Sua mais recente obra "1,99 - Um Supermercado que Vende Palavras", é um trabalho que não deveria ser visto apenas por meia dúzia de cinéfilos, mas que merecia ser adotado como experiência obrigatória em todas as faculdades do país.
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"Estranho", "Diferente", "Entediante", "Falso". Pelas críticas não se trata de um filme comum. "1,99 - Um Supermercado Que Vende Palavras" de Marcelo Masagão consegue transformar em narrativa visual os abstratos mecanismos do fetichismo das marcas e do consumo. Dessa forma, evita cair no lugar-comum das críticas à sociedade de consumo.
Fazer uma crítica à sociedade de consumo já se tornou um lugar-comum, principalmente porque ela acaba vítima de duas armadilhas: primeiro a da análise moralista com a visão de que no consumo “o ter substitui o ser” ao induzir as pessoas ao “consumismo” de “bens supérfluos”. E, segundo, a de reduzir o consumo à sua superficialidade, isto é, ao mero ato de aquisição de bens materiais. Ambas as críticas acabam convergindo para a solução reformista: se o consumo é uma questão de excesso e de superfluidade, então devemos professar o “consumo consciente”.
No filme “1,99 – Um supermercado que Vende Palavras” (2003) o diretor Marcelo Masagão consegue driblar essas armadilhas de análise ao propor uma visão mais radical sobre a sociedade de consumo: o seu problema não é que as pessoas sejam definidas pelo que elas têm, mas que suas identidades sejam construídas a partir do que desejam, idealizam e sonham traduzido por marcas e mercadorias. Pouco importa se de fato as pessoas comprem. O consumo já está muito além disso, está no campo psíquico do desejo, da intenção, da fantasia, em outras palavras, do fetiche.
O filme “1,99” é composto de uma série de “sketches” que se passam em um supermercado imaginário, todo assepticamente branco, que vende ao invés de produtos caixas vazias com dizeres com slogans bem conhecidos (como “Just do it”) até frases de auto-ajuda. Vemos consumidores arrastando seus carrinhos como robôs apáticos e melancólicos atraídos pelos slogans dos produtos genéricos nas prateleiras: “seja você mesmo”, “você é único”, “você conhece, você confia” etc.
Marcelo Masagão cria uma série de pequenas estórias cínicas e irônicas tal como a cena do caixa eletrônico que sugere uma relação sexual com o usuário que insere o cartão na máquina até culminar com o “orgasmo”, a saída do dinheiro; a máquina da “visão” 360° onde o consumidor vê sua vida em perspectiva e acompanha as marcas de produtos que estiveram associadas a cada momento desde a infância até a vida adulta; a excêntrica cena da vaca com os dizeres “justo do it” da qual jorram das tetas leite já achocolatado sugerindo o viés científico e tecnológico do consumo onde a natureza já foi processada industrialmente.
Masagão conta que o filme foi concebido após ler o livro “Sem Logo” de Naomi Klein que discute a necessidade das marcas cada vez mais fetichizarem suas imagens, resultando que o slogan ou o valor agregado à marca se torna mais importante que o próprio produto.
Necessidade de Fetiche
Todo o filme vai desenvolver essa análise de um consumo cuja materialidade do produto (seu valor de uso, necessidade ou funcionalidade) desapareceu para, em seu lugar, o consumidor procurar ideias, conceitos e atitudes.
A certa altura da narrativa vemos metaforicamente a imagem de uma serpente (o fetiche) devorando um rato (a necessidade). “Necessidade de Fetiche?” pergunta a inscrição em uma das caixas da prateleira.
Magistralmente Masagão vai tecendo ao longo dos skecthes duas consequências dessa “necessidade de fetiche”: a imaterialidade do consumo e o esvaziamento espiritual do consumidor.
O filme divide a narrativa em dois espaços: o interior do supermercado (branco, limpo e asséptico) e o exterior (escuro, sujo, com pilhas de pneus velhos). A alusão é clara: o “apartheid” da sociedade de consumo. Lá fora estão os excluídos que sonham entrar no supermercado, ficam caminhando em círculos como zumbis diante da entrada. Uma funcionária sobre patins escolhe dois dos excluídos, não para também entrarem na festa do consumo mas para trabalharem como seguranças ao lado do erótico caixa eletrônico.
Mas há um detalhe: todos os que estão lá fora procuram imitar gestos e atitudes daqueles que estão no interior do supermercado “1,99”: se os incluídos começam a fazer ginástica, os excluídos imitam lá fora; se os celulares tocam e os “incluídos” atendem com gestos caricatos, lá fora os “excluídos” repetem os mesmos gestos. Fora do supermercado os “excluídos” imitam, invejam, sonham embora, de fato, não consumam (a não ser produtos piratas como mostrado em um close no tênis Nike falsificado de um excluído sentado em um pneu velho).
Masagão expõe, dessa maneira, o abstrato e perverso mecanismo por trás da fetichização do consumo: o desejo frustrado da maioria que não consegue comprar os produtos de marca, involuntariamente agrega valor a produtos consumidos por uma minoria que se dispõe a pagar valores absurdos. E por que? Por causa da inveja e frustração que agrega valor à marca-fetiche.
As agências transnacionais de publicidade descobriram que a verdadeira fonte de lucro no consumo não está na compra em si do produto mas no fato dele se tornar mundialmente desejável, o que agrega ainda mais valor, ao lado da tecnologia e da boa imagem de apresentação. Se o “excluído” não possui dinheiro para comprar o tênis de marca, ele pelo menos o deseja, sonha com a possibilidade de um dia poder comprá-lo. Este desejo ardente daqueles que não podem comprar agrega ainda mais valor ao tênis “de marca”, ou seja, encarece-o ainda mais. Os poucos que irão comprá-lo acharão natural pagar a exorbitância do preço, afinal, milhões desejam comprá-lo e “só” ele pode tê-lo.
Por isso, para as agências de publicidade e empresas transnacionais não há oposição entre riqueza e pobreza, consumidores e não-consumidores, “descolados” e “remediados”. No marketing globalizado ambos os lados se complementam ao se inserirem nos mesmos perfis: o indivíduo sócio-economicamente inferior involuntariamente agregando valor a um produto que jamais poderá comprar, embora o deseje. O segregado do consumo sem saber participa dinamicamente dele com o desejo.
Dessa forma o sistema globalizado convive facilmente com a segregação sócio-cultural ao absorvê-la dentro de um equilíbrio dinâmico!