Ao ser transportado pela leveza de uma escada rolante, meus olhos ávidos já enxergam ao longe, além das paredes de vidro , os livros. De súbito, sou tomando por uma excitação trêmula que vem de dentro do meu corpo, e se estende à minha mente. Estou diante da “magia da livraria”. Diz a lenda que um dia Drummond escreveu: “livraria é casa de danação”. O poeta querido , na minha forma de sentir, apreendia um estado de êxtase.
Adentro ao espaço mítico, de logo vejo um grande continente de livros. Nas estantes arrumadas com a obrigatoriedade da obsessão sadia, descortinam-se as placas identificatórias dos vários saberes do Saber humano. Meus olhos tonteiam como tonteia meu corpo – estou tomado pela “danação”. Danação remete à coisa do Demo, do Diabo. A mente às vezes é surpreendida por uma força vulcânica, nem sempre destrutiva. É a visita do demoníaco, ainda como “servidor de Deus”, ao contrario de uma expressão “luciferiana”, que fere, destrói, expressão de um ferimento por ter sido expulso do Paraíso.
Não, minha excitação tem o saber angustiante de um instante de felicidade. Sinto a presença da Sabedoria, contida na intimidade dos livros, ainda sem vida enquanto não lida. Um livro em si é um objeto morto – sua ressurreição se instala quando o leitor começa a abri-lo, lê-lo e experimentar o que seu autor, o escritor, apreendeu por antecipação: experiências e intuições não ainda pensadas.
Os títulos são infinitos, as capas às vezes me seduzem por uma beleza estética. Ora prenunciam um conteúdo sábio, em outro momento é uma astúcia gráfica para ludibriar o cliente apaixonado e ávido. Penso em J.L.Borges, um fenômeno canônico da Literatura Universal. Um dia o poeta dos pampas chegou a afirmar: “sempre imaginei que o Paraíso seria algum tipo de biblioteca.”Eu me sentia, naquele momento, diante desse Paraíso. A livraria é um aquário que se entra e vai se descobrindo aquilo que se procura e aquilo que era desconhecido. É uma mistura de algo almejado porque existe, foi escrito, mas também de um livro que não se sabia que existia.
Outro dia, tive uma surpresa eufórica ao encontrar um poeta por mim nunca lido – Álvaro Alves de Faria. É dessa “danação”que Drummond intuiu e encontrou a palavra. Esse nosso poeta que gritou os protestos contra o Golpe Militar, declamando em pleno Viaduto do Chá, na cidade de São Paulo, acabava de entrar em minha vida, fazer parte do meu cotidiano, alimentar meus anseios e dar nome a estados psíquicos que sequer havia pensado.
O poeta causa um impacto revolucionário em nossa mente. O poeta antevê a experiência estética muito antes do homem comum. Meu querido Borges ensinou num ensaio sobre A Poesia, que a arte poética só se fazia e ele poderia se sentir poeta quando o leitor experienciava que os versos do poema falavam dele, do leitor. A experiência estético-artística adquire o estatuto de Arte quando é um ato social, caso contrario é um estado narcísico masturbatório.
Volto à livraria. Ainda tomado por uma experiência onírica, a danação vai dando espaço para uma escolha. Achei o livro daquele dia, escolhi levar um tanto da sabedoria daquele autor, realizei um sonho! Aproveitei para saborear um cafezinho, já curioso pelo meu tesouro comprado e ávido para adentrar na leitura inédita.
Na “minha livraria”também se encontra amigos, também se marcam encontros. Na livraria sempre o meu mundo se expande, na medida em que minha experiência com ela não se resume a fazer uma simples compra: minha experiência é algo análogo a se entregar ao desconhecido para que surja a “surpresa” daquele dia. Isso requer que desde o momento da subida pela escada, o desejo era mais profundo do que adquirir um bem, o desejo de alguém que vai encontrar sua “namorada eterna” para namorar e não para “ficar”.
Estou esquecendo de uma fato importante: o encontro com alguns funcionários, com os quais hoje já existe uma amizade. São guias, são pessoas que facilitam a minha busca, e de quando em quando apresentam autores ou obras que eu não conhecia. São parceiros da “danação”. Nesse momento que escrevo sou tomado por um desconforto meio culposo: quantas pessoas nesse nosso país não têm acesso à cultura!
Ainda vivemos num lugar em que os “homens do poder”ainda se sentem ameaçados em facilitar a Educação à população. O Saber talvez seja o maior poder que alguém possa adquirir e através dele, provocar transformações sociais.
O que seria de nós sem a cultura grega, sem a intuição visionária de William Blake, a astúcia e sabedoria em descrever estados de mente e questões política como Shakespeare? O espaço me impede de enumerar os Cânones do Saber Universal, sem os quais a experiencia de existir teria pouco sentido. Literatura é uma forma de viver, é vida, caso contrário se transforma num saber vazio. mmm
Carlos Vieira é médico e articulista do blog do Moreno. Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasilia e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.