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A mulher sem orifício

Enviado por Gilberto Godoy
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     Por Carlos Souza 

     Depois ver um artista como o Chico Buarque ser tratado de forma desrespeitosa, com criticas mal intencionadas e principalmente burras, encontrei uma critica feita por alguem que ouviu o disco e principalmente escreveu algo inteligente e coerente, como a obra do artista. Obviamente nao foi escrito por ninguem da velha midia. Essa critica esta no blog da Joana Gouvea (ainda por cima de Juiz de Fora).

     A horrenda “Veja” caiu de pau no novo CD do Chico, desclassificando o compositor e anunciando sua inexorável decadência artística, eis que ele já não seria mais o mesmo. O velho Chico teria perdido o talento de traduzir as emoções femininas e, para preservar pobremente a rima (olha ela aí!), teria optado por achincalhar a mulher, na sua nova canção “Querido Diário”:
 
     (…) Hoje pensei em ter religião / De alguma ovelha, talvez, fazer sacrifício / Por uma estátua ter adoração / Amar uma mulher sem orifício(…).

     As meninas do Saia Justa, exaltadíssimas, revoltadíssimas, tucanéssimas, quase tiveram um ataque. “Como assim, sem orifício? Isso é um absurdo, me senti mal, me senti constrangida. Poxa (assim mesmo: poxa), logo ele… Será que envelheceu, será que perdeu o tom?
 
     A música carro-chefe do próximo CD do Chico, a ser brevemente lançado, a meu ver fala mais é da angústia de viver num mundo tão agressivo. E, nele, ter que conviver entre o ceticismo e a crença, entre o ateísmo e a fé. Crença ou não, fé ou não, no ser humano, no homem – particular ou coletivo, que nos rodeia. E em nós mesmos. E, frente a essa angústia, crença ou não, fé ou não, no transcendente, no sentimento impalpável e obscuro: “(…)dizem pra eu ter muita luz, ficar com Deus / eles têm pena de eu viver sozinho(…)De volta a casa na rua / Recolhi um cão / Que de hora em hora me arranca um pedaço(…)/ Hoje o inimigo feliz veio me espreitar(…)Mas eu não quebro não / Por que sou macio”.

     Ora, afora a melodia, típica dele (e que nos conforta pelo sentimento de reencontro) é certo que essa não é, definitivamente, uma canção de amor. Chico não fala do amor romântico ou da mulher amada. Chico elabora sobre a angústia da existência, e faz poesia sobre a necessidade de um refúgio: os deuses. Ou a deusa cristã: Maria. Ou, ainda, qualquer Santa. Alguém que, para além de nosso cotidiano imediato, possamos amar sem intenções, digamos, mais primárias e objetivas. Ou como diriam os homens - nossos homens – intimamente: sem primeiras intenções.
 
     Evidente que amar uma mulher sem orifício – em se tratando de transcendência – é o mesmo que amar um homem sem falo, não?
 
     Ou alguém cogita rezar com um dos olhos sorrateiramente aberto para especular sobre a virilidade da imagem estatuada de Jesus?
 
     Me poupem.
 
     Quanto à rima, a que os homens cheios de Viagra e as mulheres cheias de mágoas se prendem, como se o destino de tudo fosse cair no mesmo buraco, um alerta: Chico continua o mesmo.
 
     Pedro pedreiro penseiro esperando o trem, manhã parece carece de esperar também, para o bem de quem tem, bem de quem não tem vintém, é rima fácil? A princípio sim: pedreiro/penseiro; trem/também; carece/parece; bem/quem/tem/vintém.
 
     Fácil para ele, cara pálida, que possui intencionalidade lírica, e jamais pensaria em soluções simplórias, apenas para finalizar um verso inacabado. Fácil para ele, que dá sentido às palavras – simples ou inusitadas. E as transforma em poesia.
 
     Mas para o Chico, difícil mesmo, impossível até, é afagar o ego de gente que possui economia de senso estético. Para essa gente, seria mais coerente ele dizer, por exemplo, que o sacrifício seria amar uma mulher difícil, ou que pulou do edifício, ou que perdeu o dentifrício, ou que provocou um genocídio.
 
     É gente que pensa – desculpem a rima – por um só orifício.
 
     É certo que tudo o que é novo causa estranhamento. É preciso ouvir mais de uma vez, até que nossos ouvidos (orifícios auriculares) se acostumem; e nossos sentidos de harmonia creditem todas as sensações que pulsam; e nosso corpo sinta a obra que se expõe.
 
     Isso se dá no cinema, no teatro, na ópera, no balé, no livro que iniciamos, na música que ouvimos, no circo. Até o quadro, que já vem pronto, não pode ser apreciado entre intervalos: ele necessita de tempo.
 
     Portanto, não me venham dizer que o Chico perdeu a rima. Chico acaba sempre se impregnando na nossa memória, e fica na gente recorrentemente marcado como uma tatuagem.
 
     Caso contrário, eu vou começar a questionar seriamente “esse coqueiro que dá coco”.
 
     P.S.: onde eu também amarro minha rede, nas noites claras de luar.

 

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