Hoje, dia 14 de março, noosa homenagem ao Dia Nacional da Poesia.
“Um homem demora muito tempo a fazer-se.
Não somos como aqueles passaritos que se soltam na imensidão dos céus
Pouco tempo depois de terem visto a luz.
Trazemos em nós uma semente que demora a germinar,
Que se gasta nessa tarefa muitos anos de agitação e silêncio.
É assim, decerto, porque está destinada
a dar um fruto muito maior que o do pássaro.
Temos, sem dúvida, uma alma: raciocinamos, temos sede de conhecer,
somos capazes de amar e de escolher.
Um animal come necessariamente,
Se tiver fome e o alimento estiver ao seu alcance.
Um homem, nas mesmas circunstâncias, pode não o fazer.
Porque, por exemplo, resolveu fazer dieta.
Ou porque escolheu dar o seu alimento a outro que tinha mais fome do que ele.
Tem a possibilidade de viver de acordo com outros critérios.
Há muitos séculos que chamamos alma a esse não-sei-quê que faz parte de nós
e nos permite viver num plano superior ao das coisas simplesmente materiais.
É como se possuíssemos uma espécie de asas.
Sabemos apreciar um sofá confortável, um sono reparador,
Um bom bife com batatas fritas. Mas precisamos de mais do que isso.
E damos por nós a perguntar "porquê?", ou a discutir idéias.
E descobrimos que há qualquer coisa - não feita de células ou moléculas
Que nos comove e nos atrai numa paisagem,
Num gesto de heroísmo, num poema, na música.
Há uma beleza e um bem que não são feitos de nada que se possa tocar.
Que não estão nas coisas, embora as coisas nos levem a eles.
Aquilo que é apenas material - acabamos sempre por o descobrir
Sabe a pouco e não nos enche as medidas.
Mas leva tempo a chegar aí.
Leva tempo até percebermos, por exemplo, que existe uma paz
Que não é a paz das coisas,
Mas sim uma harmonia interior que resulta de um comportamento correto.
E que é esse o gênero de paz que nos interessa;
Que não nos basta aquela paz que é feita somente de ausência de vento ou de guerra.
Um homem tem de crescer não apenas corporalmente.
Deve atingir uma envergadura que ultrapassa em muito o âmbito das coisas materiais.
Deve fazer-se... Homem.
É um caminho já de si longo.
Ainda por cima, cometemos com freqüência
A burrice de termos medo de ganhar asas.
De largar um pouco esses outros bens
Mais pequenos, mais baixos, mais... animais.
É olhar e ver como muitas vezes nos afadigamos
Correndo atrás da posse de bens materiais
E dos prazeres que não são senão para o corpo
E que também gostamos.
Ter, gozar, curtir, comprar, comprar... ter, ter, ter.
Mas sucede que o ter e o comprar e o curtir
Usados de um modo exagerado, como fazemos - nos atrasam.
Perdemos tempo.
Quem vive obcecado com a posse de prazeres e bens materiais
Não tem acesso aos prazeres da alma.
Passa ao lado do bem e da beleza e do amor.
Porque escolheu um nível para a sua vida
O mais cômodo - e escolher uma coisa é sacrificar as outras.
Não é possível alcançar o topo da montanha
E simultaneamente, permanecer deitado à sombra lá em baixo.
Portanto, apressemo-nos.
Pois, como escreveu o poeta,
Ter é tardar..."
Fernando Pessoa