Foi num fim de manhã deste outono, lembro que ventava muito, pois me marcou o movimento dos cabelos estapeados das pessoas caminhando encolhidas pela Rue Saint-Honoré em Paris. Empurradas pelos compromissos, pisavam sem notar as folhas inconsoláveis com a separação de suas árvores do Jardin des Tuileries, há alguns metros dali. Cachecóis voando para trás, como se quisessem agarrar alguma coisa que passou. Sem conseguir.
Eu também andava sobre as folhas, beijando ar gelado, lambendo vitrines com os olhos, quando vi aquela mulher parada quase em frente à entrada da Colette.
O casaco de bainhas e punhos esfarrapados me recordou uma coleção que o estilista John Galliano criou para a Dior, em 2000, e provocou grande escândalo por ter sido inspirada nos trajes dos mendigos de Paris. Tantos anos depois, o paradoxo pousou ali, na minha frente, a saia longa não cobrindo os pés com botas de número maior, de que cor impossível saber.
Ao contrário das mãos da maioria dos passantes, enluvadas ou protegidas dentro dos bolsos, as dela estavam nuas. Ao contrário das mãos da maioria dos pedintes, ela tinha não uma, mas as duas estendidas, as palmas levemente abertas, como se estivesse em oração. Uma Nossa Senhora com frio.
Do outro lado da calçada, sem sentimentos despertos de piedade ou compaixão, eu admirava seus olhos debruçados em um horizonte imaginário, miseravelmente serenos. A imagem da mulher atravessava meu eu como uma longa lança, provocando mais tremores do que os graus abaixo de zero do fim daquela manhã de outono.
Desses mistérios interiores... Eu me senti ligada a ela e desejei nosso reflexo na vitrine da Colette.
Atravessei a rua e me aproximei, colocando uma nota alta entre os dedos finos. O olhar agradecido não veio, assim como não veio nenhum sorriso, nenhum “Merci, madame”, nenhuma expressão de gratidão, não veio nada além do gesto delicado de guardar o dinheiro no bolso e voltar a esperar a próxima esmola, o olhar sempre debruçado no horizonte imaginário entre as lojas mais luxuosas de Paris.
Mil revistas Vogue não conseguiriam estampar aquele instante. Nada é mais elegante do que a dignidade.
Jornalista, escritora e cantora, Leticia Constant nasceu em São Paulo e vive há 20 anos, em Paris. É dela a autoria da crônica “Elegância”, uma reflexão acidental de seu dia-a-dia parisiense que iniciou ao caminhar sobre o tapete dourado das folhas outonais no Jardin des Tuileries e foi concluída diante da vitrine ultra trendy da Colette, na Rue Saint-Honoré. ta
Fonte: http://www.taste.com.br/destinos/news/item/255-elegancia.html