Ética é mais importante que título na Copa
Título original: Vamos ganhar sem trapaça, de Carlos Maranhão via revista Veja
Torça sem culpa? O importante é ganhar, não importa como? A malandragem faz parte do jogo? A “mão de Deus” pode ser uma forma de fazer justiça por linhas tortas? Mais vale vencer com um gol de impedimento, depois dos 45 minutos do segundo tempo, do que perder jogando limpo? Se não foi pênalti, azar deles? Morreu, morreu – antes ele do que eu?...
Desculpem, não quero ver o Brasil ser campeão assim. Nos últimos dias, o árbitro japonês Yuichi Nishimura foi crucificado – com toda a razão – por ter marcado aquele pênalti inexistente contra a Croácia. Não fosse esse erro escandaloso, talvez o jogo terminasse empatado. Ou nossa seleção terminaria vencendo, pois não lhe faltava competência para tanto.
Não importa. O fato é que, passado o clamor inicial, as críticas se concentram agora apenas no erro do juiz. Já o centroavante Fred, que encenou o suposto empurrão que sofreu, começa a ser absolvido. Comentaristas respeitados lhe deram nota 10 no quesito interpretação. De Felipão a Blatter, passou-se a dizer, com notável hipocrisia, que, sim, o indefeso Fred foi empurrado e, portanto, o magro Nishimura, com sua coreografia de bailarino do teatro kabuki, tinha mesmo que apontar seu dedinho indicador esquerdo para a marca do pênalti, sacando incontinente, da linha de fundo, um cartão amarelo para os croatas que ousassem contestar sua decisão.
Ora, o responsável pela marcação equivocada do pênalti inexistente tem nome e sobrenome: Frederico Chaves Guedes, o Fred, simpático e inteligente mineiro de Teófilo Otoni, centroavante competente e um homem fora do campo que tem lá seus refinamentos, como apreciar vinhos franceses de bom rótulo, gosto adquirido no período em que jogou no time do Lyon. Vamos dizer com todas as letras: ele trapaceou. Uma equipe como a brasileira, cinco vezes campeã do mundo, pátria de Pelé, Garrincha, Tostão, Rivellino, Romário, Rivaldo e Ronaldo, de Adhemar Ferreira da Silva, João do Pulo, Eder Jofre, Maria Esther Bueno, Guga e Cesar Cielo, dos heróis do vôlei, do basquete e do judô, o país de Tiradentes, José Bonifácio, Oswaldo Cruz, Rui Barbosa, Villa-Lobos e Portinari, a nação que ergueu Brasília do nada, inventou o avião e criou a bossa nova, o povo que saiu às ruas para clamar por eleições diretas e exigir a deposição de um presidente corrupto – não, não podemos aceitar que um de nós trapeceie, como se fosse algo normal, de quem gosta de levar vantagem em tudo, do meu Brasil brasileiro, terra do samba e pandeiro, diante dos olhos de 1 bilhão de pessoas ao redor do planeta, e fechar os olhos. Muito menos podemos nos orgulhar disso. Só faltaram os aplausos, mas não se perde por esperar.
O povo que exibiu a deposição de um presidente não pode aceitar a trapaça.
Maradona se vangloria até hoje daquela mãozinha. Pior para ele. Não é um exemplo a seguir. Nós não nos tornamos os únicos pentacampeões do planeta bola com esse tipo de pilantragem. Fomos algumas vezes beneficiados em Copas, é verdade, por árbitros incompetentes, desatentos ou mal-intencionados. Basta lembrar o jogo também de estreia de 2002, contra a Turquia. Ou o passinho para fora da área dado por Nilton Santos na partida com a Espanha, em 1962, esperteza que transformou um pênalti – que poderia, no extremo, ter causado nossa prematura eliminação daquele Mundial – em uma falta. Um de meus ídolos no futebol, o grande Nilton Santos repetiu essa história pela vida inteira, inclusive a mim, em um encontro que ainda me enche de saudade, e nunca se arrependeu do que fez. Talvez tenha sido o pecado isolado de um santo. De qualquer modo, foram exceções. Ao contrário de rivais que guerrearam entre si nos confins do nosso continente, vencemos sempre limpamente.
Como Nilton Santos, o goleador Fred certamente jamais reconhecerá sua encenação. Paciência. Da mesma forma, o genial Neymar seguirá encenando faltas – e os companheiros de equipe e parte da imprensa continuarão a passar a mão na sua cabeça, como se ele precisasse de simulações para brilhar, marcar gols e encantar todos os que amam o esporte. Nós, porém, que cantamos nosso hino a plenos pulmões antes dos jogos, que estamos oferecendo ao mundo pela segunda vez uma Copa, que temos craques e tradição para conquistar mais um título com nossos próprios méritos, que não aceitamos a falta de ética dos políticos e poderosos, que nos indignamos diante da injustiça e da impunidade, não podemos fingir que aquele pênalti inexistente se deve apenas à falha grostesca do árbitro japonês.
Vamos atrás da taça limpamente. E, se ela vier, vamos levantá-la de cabeça erguida. Como gente honesta que somos e queremos que o mundo nos veja.