Gonçalves Dias revisitado - Sérgio Sayeg
"Seu Gonçalves, peço um favor:
Facultar-me tua obra prima.
A Canção do Exílio me inspirou,
Pra eu tentar cá umas rimas.
Tu falavas em palmeiras,
Flores, campos, sabiás.
Belas coisas brasileiras,
Faziam a gente se emocionar.
De longe vias um Brasil
Que, de tão longe, ficou pra trás.
A terra que aqui se descobriu,
Agora nem com mil Cabrais.
Voltar pra cá era tua vontade.
Só que a volta não tem mais volta.
De fora, tu sentias saudade.
De dentro, eu sinto é revolta.
De olhar como o descaso
Desfez este belo país.
O que parecia ser atraso,
Tornava a gente mais feliz.
O governo não faz nada
E o brasileiro tudo engole.
Nossa gente é alienada.
Eta povo bunda mole!
No conformismo, fica imerso.
Não sai de cima, tampouco goza.
Então vou protestar em verso,
Que já me cansei de prosa.
Vamos parar de nhenhenhém,
E botar os pingos nesses i’s.
Prometo não poupar ninguém.
Não há inocentes nesse país.
Até os tons de nossa bandeira
Estão ficando desbotados:
O azul tá sujo, o ouro já era
E o verde tá c’os dias contados.
Nossa terra tinha palmeiras
Onde cantava o sabiá.
A palmeira virou fogueira,
O sabiá virou jantar.
Nosso céu tinha estrelas,
Tantas, nem dava pra contar.
Hoje mal consigo vê-las,
Tanto enxofre tem no ar.
Nossas várzeas tinham flores,
Têm hoje esgoto clandestino.
É só ventar, vêm uns fedores.
Era pulmão, hoje é intestino.
Nossos bosques tinham vida,
Agora têm lixo hospitalar.
Jogaram lá droga vencida,
Nem urubu pra encarar.
As palmeiras tinham ninhos.
Hoje têm ninho de cupim.
Se estão faltando passarinhos,
Tem barata com asas a não ter fim.
Nossas verduras são coloridas,
Cada legume colossal.
O segredo: os herbicidas
E agrotóxico a dar com pau.
Nossa fruta tem mais venenos
Pra deixar de vir bichada.
Só que o sabor ficou de menos
E um asséptico gosto de nada.
Todas vêm com a mesma roupa:
Goiaba, manga, abacaxi.
Enquadraram tudo em polpa
Ou como suco Maguary.
Dizem que a gente é o que come.
Aí vieram os transgênicos.
Não acabarão com a fome,
Mas deixarão todos anêmicos.
Tantos bichos (mas que dó!)
Já se foram, não voltam mais.
Nossos filhos, em breve, só
Em fotos, vão ver animais.
Bichos, plantas em extinção,
A cada dia aumenta a lista.
Quem define a preservação
É a bancada ruralista.
“Tem pet shop de montão,
Pra nossa fauna abrigar.
Tem frango, porco, gato e cão.
Só falta a porra do sabiá"
O tal progresso do país
Deu, em alegria, quanto por cento?
Se não for pra ser feliz,
De que vale o crescimento?
Os tecnocratas fazem a conta:
A economia tá evoluindo.
Só que essa conta não leva em conta
Que a qualidade ta decaindo.
Dizem que o país cresceu,
Dobrou a renda e o produto.
Se aumentou não foi o meu,
Pois dessa grana não vi um puto.
O agregado interno bruto
As pessoas embrutece.
Quanto mais sobe o produto,
Mais vejo gente que padece.
O velho lema eu reviso
Para os tempos atuais:
“Produzir é que é preciso.
Navegar, viver, já não são mais”.
Culpa da globalização,
Tudo centrado no mercado.
Uns poucos ficam com o filão,
O resto, marginalizado.
Criou-se um oásis de riqueza
Num planeta que se esfrangalha.
Alguns banqueteiam-se à mesa,
O resto vive de migalhas.
Acabaram com o fiado
E a vendinha do Juvenal.
Foi todo mundo massacrado
Pelo poder do capital.
Encheram de supermercado.
O BNDES assim o quis.
A grana que ‘farta’ pros coitados,
É farta pro Abílio Diniz.
Esse progresso é macabro,
Na cidade deixa mazelas.
Pra cada shopping que eu abro,
Aparecem dez favelas.
E o governo baixa as taxas
Pra vender mais carro novo.
Multiplicar a grana em caixa
Ferrando a saúde do povo.
O governo não tem planos,
Sempre tudo sai às pressas.
O horizonte é quatro anos.
Depois disso, não interessa.
Hoje não tem repressão.
Reduziram os gastos bélicos.
A grana vai pro mensalão
E pra adular os evangélicos.
PT, PV ou PQP,
O partido não interessa.
Assim que chega ao poder,
O cara esquece as promessas.
Bons exemplos não vêm de cima
E a gente dança conforme a trilha.
Planalto com ‘mãos ao alto’ rima,
E Brasília rima com quadrilha.
É roubalheira à vontade.
No fim do túnel, luz não vemos.
Restaure-se a moralidade
Ou todos nos locupletemos.
Justiça é cega ou não quer ver
A onda de criminalidade.
Seguir a lei, quem vai querer,
Na terra da impunidade?
O presidente progressista
Investe em obras e energia.
Meio-ambiente? Fim da lista.
Deixa lá em banho-maria.
O popular governador
É dono de jornais e rádios.
Pagar melhor o professor?
Melhor fazer novos estádios.
Lá vem o prefeito ‘quebra-galho’
C’uma floresta de CNPJ
E muitos postos de trabalho.
Abaixo a árvore! Ela não vota.
Nossos fracos governantes
Seguem sempre na esteira
Dos que já erraram antes,
Ficamos sempre na rabeira.
Cá ainda pulsa a natureza,
Mesmo com os furos no ozônio.
De que vale gerar riqueza,
Dilapidando o patrimônio?
Parece até o esperto da lenda.
Ovos de ouro ele juntava.
Pra crescer logo sua fazenda,
Matou a galinha que os botava.
Feito o estrago, o responsável
No futuro não vai estar lá.
Pelo planeta inabitável,
Quem nossos filhos vão cobrar?
Um modelo que leve em conta
Nossa riqueza natural
Faria deste um país de ponta
Na nova ordem mundial.
Natureza exuberante,
Turismo em potencial.
E nossos broncos governantes
Só investem no Pré-Sal.
O programa nuclear
Vai trazer prosperidade.
Sua energia vai gerar
Tumores e eletricidade.
A medicina a morte adia,
Dando ao corpo sobrevida.
Se a vida hoje tem mais dias,
Os dias já não têm mais vida.
Bons dias os de Gonçalves Dias.
Os de hoje em dia já não são.
Se o inverno e o outono têm mais dias,
Primaveras não se verão.
Se o poeta estivesse vivo,
No exílio estaria mais feliz.
Não teria mais motivo
Pra tecer loas ao seu país.
O infeliz do sabiá
Era feliz e não sabia.
Ressabiado, foi gorjear
Em uma outra freguesia.
Palmeiras, flores, sabiás:
Coisa boa não se herda.
Meia volta, marchar pra trás!
Que o tal progresso deu em merda."