Início da utilização do sequenciamento de genoma
Drauzio Varella Por Marco Antonio L. Da Carta Capital
“A vida real de um pensamento dura apenas até chegar ao limite das palavras”, Schopenhauer
Sequenciar todos os genes que herdamos de nossos pais deixou de ser um sonho. A tecnologia para colocar em ordem a sequência de bases responsáveis por nossas características genéticas está disponível a preços cada vez mais baixos. Em 1990, quando o Projeto Genoma foi iniciado, as estimativas eram de que o sequenciamento do genoma humano levaria 15 anos e que consumiria, aproximadamente, 1 bilhão de dólares.
Graças à automatização, o sequenciamento terminou em 2003, dois anos antes do previsto. Hoje, sequenciar genomas de bactérias, fungos, plantas e animais (até os extintos) virou rotina exequível em semanas. Várias empresas de biotecnologia e centros universitários competem pelo sequenciamento do genoma humano a 1.000 dólares, barreira que será transposta em pouco tempo.
Quando o Projeto Genoma começou, a possibilidade de identificar todos os genes humanos criou expectativas que beiravam a ficção científica. A ideia de uma medicina personalizada de acordo com as características de cada indivíduo é um sonho de todos nós, obrigados a prescrever medicamentos que fazem bem para alguns e mal para outros, e a propor medidas preventivas genéricas que não levam em conta os riscos pessoais.
Essa revolução, infelizmente, não aconteceu. A maior parte dos dados obtidos por meio do sequenciamento ainda não demonstrou relevância no tratamento das doenças mais comuns. Não sabemos como as inúmeras variações genéticas existentes entre os indivíduos se combinam de forma aditiva, compensatória ou multiplicativa para aumentar ou reduzir o risco de processos patológicos.
Por outro lado, não ser portador de um gene associado a determinada enfermidade não reduz significativamente a probabilidade de contraí-la. É o caso dos genes BRCA1 e BRCA 2. Mutações nesses genes estão associadas a risco elevado de câncer de mama e de ovário. Uma mulher com mutações em BRCA1 chega a ter de 60% a 80% de chance de apresentar câncer de mama no decorrer da vida.
Mutações nesses genes, entretanto, são responsáveis por apenas 5% do total dos cânceres de mama. Mulheres não portadoras respondem pela maioria absoluta dos casos.
No mercado, há companhias que oferecem sequenciamento de genomas a preços razoáveis. Elas, no entanto, tomam o cuidado legal de incluir no contrato de prestação de serviços que as informações obtidas não servem para “diagnóstico, cura, tratamento, paliação ou prevenção de qualquer doença ou outra condição médica ou distúrbio que afeta seu estado de saúde”. Servem então para quê?
A quantidade de dados gerada pelo sequenciamento é enorme, porque cada um de nossos genomas contém cerca de 150 mil variações genéticas. Como a interpretação desses achados é tarefa de altíssima complexidade, a aplicação em larga escala do conceito de medicina personalizada está fora do horizonte previsível.
O que está ao nosso alcance é identificar variações específicas em determinados genes associadas a aumentos significativos de risco, como são os casos de BRCA1 e BRCA2, ou o das mutações do gene APC associadas à polipose adenomatosa familiar, condição caracterizada pela presença de múltiplos pólipos intestinais que aumentam sobremaneira o risco de câncer do cólon e do reto.
A personalização dos tratamentos ensaia os primeiros passos. Identificar o gene HER2, presente em 20% das mulheres com câncer de mama, permite tratá-las com drogas dirigidas especificamente contra esse alvo (herceptina, lapatinib etc.). Detectar a variante HLA-B, num dos genes de histocompatibilidade seleciona os HIV positivos que correrão mais risco de apresentar alergia ao abacavir, uma das drogas empregadas contra a Aids.
A frustração das expectativas excessivamente otimistas não diminui a importância do sequenciamento genômico, ferramenta capaz de criar bancos de dados que fornecerão informações de grande impacto na medicina dos próximos anos.