Mulher feia e excluída: a ditadura da beleza
Joana de Vilhena Novaes
O que significa, para uma mulher, ser feia nos tempos atuais? Qual o preço pago, os sacrifícios impostos e os sofrimentos vividos? A quais práticas se submetem para escapar do “intolerável da feiúra?” “A gordura acabou com a minha vida” estampava a manchete do Jornal da Família, suplemento dominical do jornal O GLOBO, de 19/01/2003. Sabemos que, historicamente, a imagem de mulher se justapõe com a de beleza e, como segundo corolário, à de saúde (fertilidade) e juventude. A contemporaneidade,contudo, parece ter levado ao paroxismo tais representações, como veremos no decorrer de nosso trabalho. As imagens refletem corpos super trabalhados, sexuados, respondendo sempre ao desejo do outro ou corpos medicalizados, lutando contra o cansaço, contra o envelhecimento ou mesmo contra a constipação.
Implícita está a dinâmica perfeição/imperfeição, buscando atender aos mais antigos desejos do ser humano, conforme narram os mitos, os elixires e fontes de eterna juventude. Beleza exterior e saúde, aparência desagradável e doença, cada vez mais se associam como sinônimos, no tocante às representações do corpo feminino. A questão tradicional, aceitar ou não o corpo recebido parece transformar-se em – como mudar o corpo e até que ponto?
O corpo nos dizia Levi Strauss, é a melhor ferramenta para aferir a vida social de um povo. Ao corpo cabe algo muito além de ocupar um espaço no tempo. Cabe a ele uma linguagem que se institui antes daquilo que denominamos “falar”, que se exprime, evoca e suscita uma gama de marcas e falas implícitas. O corpo fala e as marcas nele feitas também. A questão estética se impõe como forma e fôrma e o que é belo pode vir a ser feio. Da mesma maneira, o belo pode instituir um padrão de feiúra. No fundo, vivemos no fio de uma navalha, fio este que tenuamente separa feiúra e beleza. O presente trabalho tem como objetivo investigar qual a relação existente entre a mulher e a beleza na contemporaneidade e qual o preço pago para “ser bela”. A feiúra, conforme demonstraremos a seguir, é uma das mais penosas formas de exclusão social na atualidade. Mas quais são as insígnias da feiúra? Acreditamos que significa não ter o corpo e a estética aceitos socialmente, ou seja: ser jovem, ser magro e ser saudável.
Buscamos também apontar como a imagem da mulher e do feminino continua associada à da beleza, havendo cada vez menos tolerância para os desvios nos padrões estéticos socialmente estabelecidos. Neste sentido, tomamos a gordura como o paradigma da feiúra e apontamos para os processos de exclusão vividos por aqueles que nela se enquadram. As falas que ilustram o trabalho, e que utilizaremos como epígrafes, referem-se à uma pesquisa realizada em 2001, sobre a qual falaremos mais adiante.
ESTÉTICA E EXPECTATIVAS SOCIAIS : O DEVER MORAL DE SER BELA
“Acho que a cultura atual preconiza que estejamos bem para poder expor ao máximo o corpo. Hoje em dia vale muito mais um braço sarado do que roupas caríssimas, e olha que eu posso dizer, pois já fui estilista.” Courtine (1995) evidencia, através de alguns exemplos históricos, o fascínio e o estado de corpolatria característico da sociedade em que vivemos. Segundo o autor esse processo remete-nos ao fato de que, em outros momentos históricos, a apreciação estética do corpo, se dava de uma forma menos fragmentada, na qual não estavam em jogo pedaços/recortes da anatomia humana, sendo valorizado um todo harmônico.
“A atração que Charles Atlas exercia sobre o público dos anos 20 centrava-se na visão do conjunto de uma pujança corporal harmoniosa; o sucesso de Jhonny Weismuller, nas salas de cinema dos anos 40, decorria da elegância “natural” de sua musculatura(...) A fascinação que o corpo de Schwarzenegger provoca sobre o grande público da telinha é de outra natureza: congelado numa luz crua, quase cirúrgica, o body-builder faz sobressair os mínimos detalhes de sua massa corporal. Estrias das fibras musculares, ramificações da rede vascular, palpitações de um tórax estufado: a imagem ideal do corpo que o body-builder de hoje configura é aquela dos corpos destinados aos estudos anatômicos”.
É também preciso ressaltar que o controle exercido através da fiscalização de um olhar minucioso sobre a aparência e com o aval da ciência, contribui para regulamentar diferenças e determinar padrões estéticos em termos daquilo que é próprio e impróprio, adequado ou inadequado, normal ou anormal. Como bem sugere Durif, “o corpo torna-se álibi de sua própria imagem.”. Esse controle da aparência traduz-se não somente na atribuição de características estéticas, como investem-nas de julgamentos morais e significados sociais.
“Um professor disse que se eu emagrecesse me tratariam diferente. É claro que os caras não vão olhar para uma banhuda e sim para a saradona, mas as pessoas acham que se emagrecessem passariam a fumar Marlboro, andariam de BMW e os cabelos cresceriam louros.”
É interessante notar como os discursos que normatizam o corpo, sejam eles científico, tecnológico, publicitário, médico, estético, etc., vão, pouco à pouco, tomando conta da vida simbólica/subjetiva do sujeito. Nas palavras de Daniels, (1999): “As instâncias que normatizam o corpo invadem as dimensões expressivas e simbólicas da corporeidade, fornecendo imagens e informações que reconfiguram o próprio âmbito do vivido corporal. O leitor é sempre aquele que possui um conhecimento muito limitado e confuso de seu corpo”.
Com efeito, os cuidados físicos revelam-se, invariavelmente, como uma forma de estar preparado para enfrentar os julgamentos e expectativas sociais. Da mesma forma, todo o investimento destinado aos cuidados pessoais com a estética vincula-se à visibilidade social que o sujeito deseja atingir – evitar o olhar do outro ou à ele se expor está diretamente relacionado as qualidades estéticas do próprio corpo!
Segundo Malysse (1997), esforçamo-nos o ano todo com exercícios massacrantes para no verão termos a recompensa de poder ir à praia expor nosso corpo sem vergonha. Disciplinamos o corpo à freqüentar uma academia de ginástica a fim de que, as custas de muito suor e calorias perdidas, consigamos reconhecimento social e aprovação.
O prazer é, irreversivelmente, associado ao esforço, o sucesso à determinação, e a intensidade do esforço é claramente proporcional à angústia provocada pelo olhar do outro. Nada aqui é gratuito – tudo é obtido num sistema de regulação de trocas, seja ele dentro da lógica capitalista ou inserido no pensamento do sacrifício cristão.
Em um artigo intitulado “Os Stakhanovistas do Narcisismo”, Courtine (1995) discute o caráter hedonista, que muitos apontam na chamada cultura do corpo. Retraça a origem aos Estados Unidos, país onde as práticas sociais, sobretudo aquelas ligadas ao corpo, são mais evidentes e aponta para o caráter prescritivo das disciplinas corporais, herança do puritanismo e da cultura do “faça o melhor de si mesmo”. Para Courtine, “a pastoral do suor”, de inspiração puritana, foi uma as molas mestras do body building, com a crença de que a moralidade não é apenas uma questão só de piedade religiosa, mas também de forma e disciplina muscular.
De acordo com Durif, (1990) a imagem que as revistas oferecem para os leitores à respeito de seus próprios corpos, investe neste jogo de espelhos produzido entre o corpo e o olhar do outro, operando na construção da auto-estima e da auto-imagem, sendo: “tanto um eixo de construção como lugar de contradições inibidoras devido ao poder de coação social voltado para suas dimensões mentais, afetivas e sociais”.
Para Roland Barthes, (1982) a imagem corporal deve ser compreendida como uma resultante da influência que o ambiente exerce sobre o sujeito, num processo em que as representações corporais estão em constante transformação. Assim, nas palavras de Barthes: “meu corpo é para mim mesmo a imagem que eu creio que o outro tem deste corpo”.
Contudo, sua maior contribuição foi destacar que inúmeras táticas de sedução e intimidação são elaboradas como um reflexo da fragilidade e vulnerabilidade existentes na construção da própria imagem corporal. Tais estratégias são articuladas para darem conta da expectativa que supomos os outros terem sobre o nosso corpo. E é este aspecto tirânico das relações humanas com referência ao corpo, que justifica a constelação de atitudes negativas face à feiúra.
Aparentemente tratada como banal, a modelagem da boa aparência na verdade é investida de grande carga ideológica, fazendo com que a lógica do consumo permeie todos os investimentos estéticos.
Em recente pesquisa sobre as academias de ginástica da zona sul carioca observou-se, na fala das entrevistadas, o terror que a gordura provoca:
“Na cultura e na moda atual, infelizmente, conjugamos: roupas ínfimas com corpos secos, destituídos de qualquer gordura, para meu desespero, gordinhas não são apreciadas.”
“..conforme já disse, quando venho malhar e mantenho o meu peso ideal tá tudo azul, saio, me divirto, levo uma vida normal, quando não - é depressão na certa, não me relaciono nem com os meus filhos. Namorado então, nessas épocas, nem pensar!”
Como podemos observar, a ordem é cooptar tudo que desvie do padrão. E nada, na atualidade, é mais divergente do padrão do que a gordura – a exemplo do movimento negro, talvez fosse o caso de criarmos uma ação afirmativa para os gordos!
O DIFÍCIL PESO DA GORDURA:A DOR DA FEIÚRA
“...se não saio para malhar, fico ociosa comendo em casa, conseqüentemente engordo e por fim deprimo. Nessas fases, nem acendo a luz porque não suporto a minha imagem horrorosa, caída, toda flácida no espelho.”
Em um interessante artigo que trata a obesidade como um fenômeno social com diversas representações, Fischler, tenta construir uma classificação dos estereótipos morais ligados aos obesos.
Uma das primeiras coisas assinaladas pelo autor é o caráter de ambigüidade que as representações sociais sobre a gordura assumem no imaginário atual. Damos aos obesos um tratamento contraditório e nele, reside um paradoxo importante a ser destacado: aos gordos, associamos estereótipos como simpatia e amabilidade, por outro lado, sua imagem inspira a lipofobia como um sintoma social. E é neste horror à gordura, que uma série de técnicas de emagrecimento são forjadas - avalizadas pelos discursos construídos nas malhas da cultura do fitness e do bodybuilding.
Na contemporaneidade, a obesidade assume a forma mais representativa de alijamento social. Com relação ao julgamento social sobre a gordura, chamamos a atenção para a mais interessante contribuição que o texto de Fischler (1995) nos oferece: a criação de dois tipos fundamentais de estereótipos morais referentes à obesidade.
Nesta classificação, o autor divide os obesos em dois grupos que variam de acordo com determinados padrões de comportamento e cujas denominações são as seguintes: obesos benignos e obesos malignos. No primeiro grupo, o autor enquadra o indivíduo de comportamento expansivo, extrovertido, brincalhão – o típico gordinho “boa praça”, que parece querer desculpar-se pela inadequação física compensando, tal fato, através da convivência agradável.
Já no segundo, figuram as pessoas que se negam a efetuar qualquer tipo de transação simbólica com vistas a serem socialmente aceitas. Frases do tipo: gordo tem obrigação de ser simpático, ilustram bem o que autor tenta demonstrar em seu argumento.
Ao que parece, as pessoas bonitas têm prerrogativas. Ao vermos uma pessoa muito bonita parecemos desculpar todo e qualquer tipo de defeito de caráter. Inversamente proporcionais aos comentários depreciativos em relação as pessoas gordas, são aqueles associados aos indivíduos de bela de aparência. Aos belos, tudo é desculpado e permitido, pois a beleza, em si, é a moeda de troca. Não havendo qualquer tipo de restituição simbólica que possa despertar a piedade alheia, os gordos pertencentes ao últipo grupo são mantidos excluídos, feito párias sociais, pois já não participam das regras do jogo social.
Não à toa, na sociedade contemporânea, os obesos são denominados “malignos” ou “malditos” – como no jocoso termo empregado por Fischler. Possuem também, um comportamento visto como depressivo e por isso, desprovido da obstinação necessária para a contenção de suas medidas corporais. Enfim, sua imagem demonstra um certo desânimo perante a vida e traduz fracasso no agenciamento do próprio corpo e dos seus limites.
Numa sociedade como a nossa, na qual o máximo da valoração social não reside na realização das ideologias/utopias, mas na realização dos projetos individuais – nada, então, mais antipático e que desperte menos solidariedade do que um indivíduo incapaz de empenhar-se no projeto pessoal da boa aparência.
Se, historicamente, as mulheres preocupavam-se com a sua beleza, hoje elas são responsáveis por ela. De dever social (se conseguir, melhor), a beleza tornou-se um dever moral (se quiser eu consigo). O fracasso, não se deve mais a uma impossibilidade mais ampla, mas a uma incapacidade individual.
Enquanto nos séculos passados podíamos culpar a natureza, na contemporaneidade, a negligência é a responsável e a culpa é individual. Segundo Baudrillard (1970) o que hoje podemos observar é a "moralização do corpo feminino", o que indica a passagem de uma estética para uma ética do corpo feminino.
Partindo, então, da premissa de que os imperativos estéticos são, simultaneamente, produzidos e reforçados por expectativas socialmente instituídas, é possível concluir-se que é a relação com a alteridade, ou seja, com o olhar do outro, que atribui uma avaliação demasiadamente depreciativa a respeito da imagem corporal que o sujeito constrói sobre si. Nota-se, contudo, que ao descrever a própria imagem, o indivíduo tende em querer desvencilhar-se dos adjetivos mais depreciativos, fazendo uso de eufemismos e diminutivos para mascarar sua real aparência.
É interessante notar a maneira peculiar e afetuosa, parecendo muitas vezes negar a realidade, como a maioria das mães de crianças obesas descrevem seus filhos – referem-se aos mesmos como gordinhos, cheinhos ou gulosos, enquanto na escola seus colegas utilizam-se de adjetivos agressivos e que denotam uma evidente depreciação moral: (balofo, hipopótamo, paquiderme, rolha de poço...) Usando este tipo de denominação, as mães parecem desculpar seus filhos perante a sociedade, que os encara como glutões e inadequados. É também através da adjetivação carregada de afeto que fornecem a valoração não encontrada socialmente.
Fischler (op.cit) sublinha, ainda, um outro tipo de julgamento moral que surge de forma recorrente no imaginário social. Nele, indagamo-nos se os gordos são vítimas do seu metabolismo e da sua carga genética ou, culpados por um comportamento transgressor com relação à comida. De acordo com a enquête feita pela autor, um número expressivo de pessoas atribuem aos obesos a responsabilidade por sua condição, ou seja, são considerados, simultaneamente, descontrolados e com uma voracidade desmedida. Embora, socialmente, compreendidos possuidores de uma espécie de compulsão, no caso da glutoneria, o sentimento moral de culpa e responsabilidade não lhes é aliviado.
Como bem aponta o autor, as categorias que representam a gordura, a magreza e a obesidade mantém-se, relativamente, estáveis ao longo dos séculos. Contudo, é preciso que estejamos atentos, pois são os critérios que determinam o limiar entre uma e outra, que sofrem grandes variações. Nas palavras do autor: ”era preciso sem dúvida, no passado, ser mais gordo do que hoje para ser julgado obeso e bem menos magro para ser considerado magro”
Em última análise, nota-se que na atualidade a tolerância para com a gordura diminuiu drasticamente, chegando, até mesmo, a ser enquadrada na forma de uma categoria de exclusão. Carregada de estereótipos depreciativos, a gordura dá lugar a magreza, que é, então, positivada e exaltada.
Assim, a mesma cultura que elege o corpo como lócus privilegiado dos investimentos individuais produz, simultaneamente, sujeitos lipofóbicos e o atual estado de corpolatria do qual somos todos testemunhas.