Sobre realidade e aparência - Theófilo Silva
Uma das mais belas e impactantes sentenças escritas por Shakespeare – sobre o tema que vou tratar aqui, o bardo tem centenas de passagens tão belas quanto esta – está em uma de suas obras primas, Otelo, O Mouro de Veneza: “Men should be they seem”. “Os homens deveriam ser o que parecem”, em português. A frase composta de monossílabos é de estonteante sonoridade em língua inglesa. Por isso faço questão de citá-la no original. É pronunciada por Otelo, logo após o “honesto” Iago, era assim que Otelo se referia a ele, tê-lo feito matar sua própria esposa, a inocente Desdêmona.
Esta máxima encerra um dos grandes dilemas enfrentados pelo ser humano: o conflito entre realidade e aparência. Shakespeare nos alertou em sua obra sobre os perigos enfrentados pelo homem diante dessa cruel realidade de enorme potencial destrutivo. De o quanto esse jogo de máscaras é uma espécie de chave da existência, com um peso enorme em nossas vidas. E não é exagero dizer que tudo na vida gira em torno disso. Sim, as pessoas deveriam parecer o que são, e seus rostos deveriam denotar o seu interior, demonstrando seu caráter e sua personalidade. Pelo menos é o que todos nós desejamos. Mas não é!
Shakespeare disse que: “O mundo inteiro é um palco e todos nós somos atores”. E nos deu muitos exemplos em sua obra de como se dá essa representação. Assim, na Comédia dos Erros, uma de suas primeiras peças, vemos as confusões entre dois pares de Gêmeos, os quatro irmãos Drômio e Antífolo a confundir as pessoas com suas incríveis semelhanças físicas, mas bastante diferentes no comportamento. Em A Tragédia de Júlio César, vemos o ditador romano dissertando sobre “a magreza de Cássio”, pois não confia em homens assim, e que prefere “homens gordos ao seu lado”. Em Rei Lear, temos Edgar disfarçado de mendigo de forma bastante exagerada, indo bem além de suas necessidades naquele momento. Em Sonho de uma Noite de Verão, Botton é enfeitiçado e transformado “em cabeça de burro”, para conquistar a bela e sonhadora Titânia. Romeu e Julieta estão mascarados quando se conhecem em um baile. Hamlet diz para Ofélia: “Soube também que você faz uso de pinturas. Deus te deu uma face e você fabrica outra”. Em Macbeth, o bondoso Rei Duncan refere-se ao barão de Cawdor, condenado a morte por traição, dizendo: “Não existe arte que possa decifrar o sentido da alma pela face”. Não existe mesmo.
Não vou discutir nossas relações pessoais, nossas decepções do dia a dia com as pessoas do nosso convívio, familiares, amigos, colegas de trabalho. Quero discutir a imagem dos homens públicos, os representantes da sociedade, os que administram as cidades, estados, países e as instituições que cuidam de nós. Levanto essa questão shakespeariana para mostrar os perigos que se escondem por trás dessa verdade insofismável: de o quanto estamos expostos aos perigos do império dos mascarados, enganadores e farsantes que estão ao nosso redor. Construir um nome, uma imagem, é isso que homens e mulheres fazem por intermédio dos meios de comunicação. Dificilmente a visão que temos de uma figura pública: seu caráter, personalidade, comportamento, visão de mundo, simpatia, corresponde ao que ela é.
Não estou falando somente daqueles cujas imagens são construídas cuidadosamente, e a peso de ouro, por marqueteiros, mas dos sujeitos que parecem naturais, espontâneos, sorriso fácil, dá tapinha nas costas, faz elogios gratuitos e repetitivos, são cheios de artefatos e subterfúgios, que são “gente boa”, mas que “não passa de um batedor de carteiras” de terno e gravata. Essas figuras falsificadas desfilam no parlamento, tribunais, ministérios, nos órgãos de comunicação, redes sociais e estão em todos os lugares. Desconfiem também dos despojados demais, simples demais: são os mais perigosos. Lembrem-se, não é uma cara antipática ou boazinha que vai dizer se esse alguém é bom ou mau. Shakespeare diria que quase ninguém é o que parece.
Os muitos ditados populares: As aparências enganam; Quem vê cara não vê coração; Só tem cara de santo; Vive de aparências; É um lobo em pele de cordeiro; É mais falso do que uma nota de três reais, e por aí vai, confirmam o que estamos expondo. Se as pessoas no dia a dia – muito embora quase todas achem que sabem – soubessem que uma figura pública quase nunca corresponde à imagem que fazemos dela, teríamos homens públicos bem melhores do que sempre tivemos. Não esqueçamos do defenestrado procurador, senador e ator Demóstenes Torres.
Escapar das armadilhas da vida é tarefa de todos nós. Sempre foi e sempre será. Mas não custa lembrar. Pelo menos, para não fazermos como Otelo, que depois de prejudicado, disse que os Homens deveriam ser o que parecem. É meu recado!