A perigosa indústria das doenças mentais
Diretor da revisão do DSM IV, em 1994, o psiquiatra Allen Frances alerta que aumento de diagnósticos de transtornos mentais está engolindo a normalidade
Traduzido para 12 idiomas, mas ainda em busca de editora no Brasil, o livro de Allen Frances “Saving Normal” (Salvando o normal, em tradução livre) questiona o manual que é referência para psiquiatras do mundo no diagnósticos de transtornos mentais. Para Frances, dificuldades diárias ganharam nomes de distúrbios no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Como resultado, uma legião de pessoas usa remédios sem necessidade, tendência que, ele diz, tem influência da indústria farmacêutica.
O DSM 5, mais recente edição da “bíblia da psiquiatria”, é cercado de polêmicas, e uma delas veio do Instituto Nacional de Saúde Mental (NHI), um dos principais órgãos norte-americanos, que decidiu excluir de financiamentos as pesquisas que se baseiam nas categorias do guia. Especialistas como Frances — diretor da revisão da edição anterior a esta, o DSM IV — dizem que os critérios de diagnósticos são “frouxos” e podem sofrer pressões de setores interessados.
O senhor acredita num retrocesso do DSM 5 em relação do DSM IV?
Houve pouca controvérsia no DSM IV (1994) porque ele rejeitou 92 de 94 sugestões de novos diagnósticos. O DSM 5 (2013) é muito polêmico porque abriu as portas para a irresponsável abundância de diagnósticos e de venda de remédios.
Na sua opinião, novos transtornos foram incluídos sem necessidade no DSM 5? De quem é a responsabilidade?
Sim, estamos transformando os problemas diários em transtornos mentais e tratando-os com comprimidos. Parte do problema é que o sistema de diagnóstico é muito frouxo. Mas o principal problema é que a indústria farmacêutica vende doenças e tenta convencer indivíduos de que precisam de remédios. Eles gastam bilhões de dólares em publicidade enganosa para vender doenças psiquiátricas e empurrar medicamentos.
Quais seriam os exemplos desses excessos do manual?
Uma tristeza normal se tornou “transtorno depressivo maior”; um esquecimento da idade é “transtorno neurocognitivo leve”; birras usuais do temperamento infantil se tornam “transtorno disruptivo de desregulação do humor”; exagerar na comida virou “transtorno da compulsão alimentar periódica”; uma preocupação de um sintoma médico é “transtorno de sintoma somático”; e em breve todos terão “transtorno de déficit de atenção e hiperatividade” (TDAH) e tomarão estimulantes.
Quando o psiquiatra Leon Eisenberg, considerado “o pai do TDAH”, se deparou com o aumento do diagnóstico nos EUA, ele o chamou de “doença fictícia”. Qual é a sua opinião?
O TDAH ocorre em 3% das crianças, mas é diagnosticado em 11% de americanos e, ridiculamente, em 20% de adolescentes homens. O remédio pode ser bom para poucos e terrível se usado em muitos.
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Quão profundo pode ser o impacto de remédios desnecessários no comportamento desses indivíduos?
Fazemos um vasto e descontrolado experimento em nossas crianças, banhando seus cérebros imaturos com produtos químicos fortes sem saber seus efeitos de longo prazo. Pais precisam se tornar consumidores informados e proteger seus filhos.
A indústria farmacêutica exerce alguma pressão sobre o grupo de trabalho responsável pela revisão do DSM?
Ela espera às margens e não faz pressão na revisão de diagnósticos. Mas tem financiamento ilimitado e os melhores cérebros publicitários dedicados a difundir a desinformação de que transtornos psiquiátricos são subdiagnosticados e fáceis de diagnosticar. E apresenta comprimidos como solução.
Temos dados científicos suficientes para embasar os diagnósticos?
Aprendemos muito sobre o funcionamento do cérebro, mas até agora isso não ajudou um único paciente. O cérebro é a coisa mais complicada que existe. A passagem da ciência básica para a prática clínica é dolorosamente lenta, e não podemos nos apressar na psiquiatria. Ainda não temos testes biológicos para definir doenças mentais, mas isso não significa que não podemos ajudar aqueles que realmente precisam.
Como balancear a crítica ao excesso de diagnóstico sem elevar o preconceito com os doentes?
Enquanto tratamos em excesso os que não precisam, vergonhosamente deixamos os doentes de verdade ao léu. Temos ferramentas para ajudá-los a ser produtivos e ter dignidade.
Quais são as consequências disto?
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Os gravemente doentes terminam na rua, em prisões ou hospitais psiquiátricos inadequados. Precisamos focar nos que estão doentes e proteger os que acham que estão. Nos EUA, pessoas morrem mais por remédios prescritos do que de drogas ilícitas.
Que medidas sociedade, cientistas, autoridades e indústria farmacêutica poderiam tomar?
Apertar o sistema de diagnóstico; recapacitar médicos para os riscos, e não apenas os benefícios de remédios; eliminar a propaganda de companhias farmacêuticas. É uma batalha de Davi contra Golias, mas foi bem-sucedida contra a indústria do tabaco.
Fonte: O Globo.com/saúde