A tortuosa tarefa de punir - Gaudêncio Torquato
Impunidade. Esse é um dos maiores traços de união entre o Brasil de ontem e o Brasil de hoje. Em 1549, o velho Tomé de Souza, ao instalar o governo geral, deu forte demonstração de sua autoridade. Mandou amarrar um índio acusado de assassinar um colono em Salvador (BA) na boca de um canhão, que o fez em pedaços pelos ares. O ato ficou no espetáculo. A criminalidade, em vez de diminuir, se expandiu.
Ao tomar posse como Regente do Império, em 1835, Diogo Feijó prometia um governo infatigável na meta de executar as leis penais. Brandia o refrão: “a impunidade deve cessar”.
Pretendia o Regente por um fim à cultura do perdão que fincou raízes no país desde os tempos (1534/1536) em que o rei de Portugal, D. João III, para incentivar o povoamento do território, estabelecia que nenhuma pessoa poderia “ser presa, acusada, nem proibida, nem forçada, nem executada de maneira alguma”, com exceção de crimes cometidos por heresia, traição, sodomia e moeda falsa.
O esforço de Feijó também foi em vão. De lá para cá, o epíteto de “campeão da impunidade” tem sido recorrente para caracterizar os nossos Trópicos. As tentativas de ajustar os ponteiros da justiça na área criminal se defrontam com obstáculos de difícil travessia, entre os quais contabilizam-se mazelas que abrigam o ethos nacional: patriarcalismo, mandonismo, grupismo, familismo.
Por conseguinte, é com otimismo que se registra a atuação do Judiciário na poderosa esfera da política, a denotar que a salvaguarda do princípio basilar da Constituição – todos são iguais perante a lei – integra, com regularidade, a pauta de decisões das Cortes.
O julgamento no Supremo Tribunal Federal do episódio conhecido como mensalão, a partir de agosto, demonstra que o dito do filósofo Anacaris começa a frequentar o baú do passado: “as leis são como teias de aranha; os pequenos insetos prendem-se nelas e os grandes rasgam-nas sem custo”.
O fato é que, paulatinamente, velhos padrões e costumes imergem nas águas da modernização. A força social se adensa na onda de entidades que articulam interesses de grupos organizados. Novos pólos de poder e múltiplos circuitos de representação se instalam em todos os cantos. Classes ascendem nos andares da pirâmide.
Os sistemas de defesa coletiva alargam fronteiras por força das tarefas e ações (às vezes de ímpeto juvenil e espetacularizadas) do Ministério Público em combinação com a Polícia Federal. Temas que, até pouco, eram confinados a ambientes restritos agora sobem aos foros institucionais, animando o debate público.
A cidadania se eleva. Não é de admirar que, sob esse cobertor de proteção, costurado por nossa ainda incipiente democracia, as pessoas sintam mais elevada sua auto-estima.
Esse é o grau civilizatório que aperta os parafusos ainda soltos de nossas estruturas administrativas, exigindo que leis sejam cumpridas e canais da Justiça sejam desobstruídos. A impunidade gera indignação, cobrança e pressão.
É inadmissível enxergar um país que avança na trajetória da consolidação das instituições convivendo com um território povoado por barbárie. Os dados falam por si. De cada 100 homicídios no país apenas 8 são apurados de maneira adequada.
Em 2010, a Secretaria Nacional de Segurança Pública exibia um levantamento com 87 mil inquéritos de homicídio sem conclusão. O diagnóstico aponta para um déficit de mais de 30 mil peritos, carência de equipamentos especializados, excesso de burocracia e formalidades. Vítimas e testemunhas temem prestar depoimentos.
Há uma enorme distância entre a criminalidade real e a criminalidade registrada, que os estudiosos designam como zona escura, assim explicada: nem todo delito cometido é notificado à Polícia; nem tudo que é notificado é investigado; dos delitos investigados poucos são efetivamente apurados; e entre aqueles que são apurados nem todos são processados. Ou seja, nem sempre a denúncia acaba em condenação.
O acervo da impunidade se alicerça, ainda, na teoria dos filtros desenvolvida pelo professor Arno Pilgram, do Instituto de Sociologia Legal da Áustria, pela qual as dificuldades para punir levam em conta barreiras em série, a partir da própria legislação, autores e vítimas dos crimes, testemunhas, Polícia, fiscais e Tribunais etc.
Para começar há um excesso de leis – mais de mil tipos penais. Até parece que os legisladores, na ânsia de ouvir a tuba de ressonância social, procuram multiplicar o rol de crimes, adensando a já farta legislação.
Para piorar, surfando nas ondas do “politicamente correto”, a Comissão que estuda a renovação do Código Penal defende posições que resvalam pelo arenoso terreno da “inversão de valores”, conforme argumentou, recentemente, a professora de Direito Penal da USP, Janaina Conceição Paschoal (FSP/10/06/2012).
De fato, parece contrasenso diminuir a pena para quem realiza aborto numa gestante, expandir as hipóteses que tornam lícita a prática e propor pena de 1 a 4 anos para quem abandona um cachorro na rua.
Anote-se, ainda, que abandonar um incapaz pode resultar em pena de 6 meses a 3 anos. A docente não vê também proporcionalidade entre o fato de considerar o racismo um crime imprescritível enquanto o homicídio prescreve. A lista de incongruências é grande, a denotar o gosto brasileiro por bandeiras agitadas ao sabor das circunstâncias.
Nesse terreno cheio de buracos, florescem sementes de extravagância. O essencial dá lugar ao acessório. Floreios e firulas acabam estiolando a crença na Justiça. Mas o Brasil, como se pode constatar, também ouve o grito das ruas. Esforça-se, de maneira lenta e gradual, para se desvencilhar das amarras do passado.
É o que se constata no momento. Na avalanche de denúncias, histórias estrambóticas, máfias que agem nos intestinos do Estado, uma tocha se acende para iluminar as consciências e reavivar a fé.
O STF, com a decisão de julgar um dos casos mais importantes de sua história, mostra o altar da Justiça como o centro de suas orações.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato