Fim de lixão no Rio deixa catadores sem destino
Eles viveram décadas na incerteza: não sabiam, quando chegavam ao Aterro de Gramacho para disputar lixo com urubus, porcos e cachorros, quanto conseguiriam faturar na jornada. A partir do dia 1 de junho, quando o maior lixão da América Latina — que se estende por uma área de 1,3 milhão de metros quadrados, à beira da Baía de Guanabara — fechar finalmente as portas após 34 anos de atividade, a incerteza será bem mais grave. Cerca de 1.700 catadores vão ser obrigados a se despedir da vida que sempre conheceram com uma mão na frente, outra atrás e R$ 14 mil no bolso. Emprego garantido que é bom, quase ninguém tem. O que existe é a oferta de cursos profissionalizantes e a criação, com recursos do Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano (Fecam), de um Polo de Reciclagem, que deve empregar cerca de 500 pessoas e começar a funcionar no segundo semestre.
Cem catadores estão empregados em obras, graças a um acordo com o sindicato da construção civil. A Faetec, vinculada à Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, oferecerá, em parceria com a Secretaria municipal do Meio Ambiente, 1.320 vagas em cursos profissionalizantes (eletricista, instalador predial de baixa tensão, encanador, pedreiro, carpinteiro e nível básico de informática). As aulas começam no dia seguinte ao fechamento do aterro. Não há ainda inscritos. Segundo Isaías Bezerra, coordenador de responsabilidade social da Nova Gramacho, empresa que opera o aterro, o que impera é a desorientação:
— Nada garante aos catadores que vão achar emprego depois dos cursos. Muitos deles não tinham sequer certidão de nascimento. Agora, o estado de direito, com documentos, oferta de cursos, apareceu num lugar que nunca teve regra, onde valia a voz de quem falasse mais alto ou tivesse uma arma. Além disso, muitos nunca fizeram nada além de viver do lixo. O processo é muito delicado, é como se você tirasse uma nação indígena de onde ela sempre viveu.
Dos catadores, 20% nunca foram à escola
Um estudo encomendado pela Secretaria do Ambiente ao Instituto de Estudo do Trabalho e Sociedade sobre o Jardim Gramacho, bairro onde funciona o aterro, dá uma ideia do problema. No local, há 5.807 pessoas pobres e 2.101 indigentes. A pobreza extrema acontece em 18% dos domicílios com catadores. Com o fim do aterro, diz o estudo, a renda domiciliar per capita será reduzida a um terço. Os lares em situação de indigência darão um salto para 68%. Outro dado alarmante: 20% dos catadores jamais estudaram.
— A partir do estudo, conseguimos ajudar muitos catadores a se inscrever no Bolsa Família — diz Carlos Minc, secretário estadual do Ambiente.
Repórteres do GLOBO que estiveram em Gramacho eram cercados por muitos catadores, que faziam questão de contar suas histórias e partilhar as dúvidas sobre o futuro:
— Eu já tentei vários vezes ir para o mercado de trabalho, fiz curso de cozinha, de boleira. Mas só tenho a 8 série (9 ano) incompleta. Quando eu participo de entrevistas, não sei se é a aparência que tenho, mas não ligam de volta. O aterro me deu muita coisa, em épocas boas eu tirava mais de R$ 100 por dia. Paguei remédios da minha filha, que nasceu com sífilis, paguei curso. Hoje ela mora na Itália e quer fazer engenharia — abriu o coração Angélica Sabino Silva, que não sabe o que fará com os R$ 14 mil que receberá do Fundo de Participação dos Catadores.
Atualmente, só adultos e idosos são vistos disputando o lixo produzido por cariocas. Mas até a década de 90 era comum ver crianças remexendo os dejetos. Hélio Côrrea era uma delas:
— Vim com 12 anos. Eu dava a volta, entrava no cambalacho. Se eu não viesse, não comia. Catava a manhã toda e à noite ia para o colégio. Mas cansava e acabei ficando em Gramacho — conta ele, que agora terminar o ensino fundamental.
— Me preocupa o destino dos catadores. O dinheiro vai durar um tempo, mas e depois? A economia da região inteira gira em torno do lixo. Em volta, há muitos lixões clandestinos. Se não houver uma ação social definitiva, muitos podem voltar e fomentar a ilegalidade na área — diz Vik Muniz, o artista plástico que apresentou as mazelas de Gramacho com “Lixo extraordinário”, documentário que disputou o Oscar.
O dinheiro do fundo vai beneficiar 1.709 catadores. Os recursos, de R$ 21 milhões, são uma das contrapartidas previstas no contrato da Comlurb com a empresa Novo Gramacho, que vai explorar, por 15 anos, o gás metano produzido no aterro e que será vendido para a Reduc. Outra obrigação da empresa será investir R$ 20 milhões em melhorias para o bairro de Jardim Gramacho. Outros R$ 60 milhões serão captados junto ao governo federal e outros órgãos.
O dinheiro tem sido motivo de brigas homéricas no aterro. Na última terça-feira, uma catadora, membro do conselho de lideranças de Gramacho, foi parar na delegacia, acusando uma outra, responsável pela elaboração da listagem, de agressão. A confusão começou porque ninguém se entende em relação a quem tem direito ou não de entrar na lista.
— O conselho gestor fez a lista sem ouvir o conselho de liderança, como foi combinado — diz Márcio Marciano, um dos líderes. Segundo ele, cerca de 300 pessoas foram incluídas indevidamente e outras cem, que deveriam estar, não estão. Recorrem agora à Defensoria Pública.
Se o destino dos catadores é uma incógnita, o do aterro e o do lixo já estão traçados. As nove mil toneladas diárias que chegavam do Rio vão todas para o Aterro de Seropédica, que também deve receber o lixo de Caxias, pouco mais de uma tonelada/dia. O de São João de Meriti deve ir para o Aterro de Belford Roxo. Os dois locais são chamados de Centros de Tratamento de Resíduos e contam com medidas para evitar a poluição do solo, impermeabilizado com mantas plásticas, areia e argila. Assim que os caminhões despejam lixo, ele é coberto. Os centros não têm catadores. Nem urubus. Uma realidade que Celso Pereira Malaquias não consegue conceber. Pai de 5 filhos, ele conheceu a mulher (“o melhor presente que Gramacho me deu”) no lixão.
— Sou muito grato a tudo isso aqui. Minha única tristeza é que vai fechar. Queria que desse para trabalhar em Seropédica — diz ele.
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