Por mais de dez anos, a família Schurmann guardou um segredo. Velejadores, que trocaram a vida confortável em Santa Catarina pela (falta de) rotina em um barco, estavam acostumados a ter as aventuras em alto-mar registradas por emissoras de tevê e jornais.
A volta ao mundo e o estilo de vida pouco usual foram contados em livro.
Mas o casal Vilfredo e Heloisa e os filhos Pierre, David e Wilhem tiveram de aprender a conciliar a exposição com aquilo que não podiam revelar - a caçula Katherine, adotada aos 3 anos, em 1995, era soropositiva.
A morte de Kat, em 2006, fez com que o voto de silêncio fosse quebrado. A própria menina queria contar que era portadora de HIV, como forma de combater o preconceito. "A luta de uma criança contra essa doença é inglória. Mas nada é pior do que o preconceito e a falta de amor", dizia a nota divulgada pelos Schurmann, em maio de 2006, após a morte da caçula por complicações decorrentes de uma pneumonia.
Heloisa, aos 64 anos, reuniu forças e as páginas manchadas de lágrimas, com letra por vezes ilegível, em que desabafou a dor pela morte da filha. Em Pequeno Segredo - A Lição de Vida de Kat para a Família Schurmann, lançado pela editora Agir, ela fala sobre a difícil decisão de adotar uma criança soropositiva, as viagens pelo mundo, as dificuldades para conseguir atendimento médico e sobre como Kat transformou a vida deles.
Katherine era filha da brasileira Jeanne com o neozelandês Robert. O casal, que também velejava, conheceu os Schurmann em 1991, quando a família aportou na Nova Zelândia. Jeanne tinha recebido havia pouco a notícia de que estava grávida. O que não sabia é que havia sido contaminada pelo HIV em transfusões de sangue que recebera em 1986, depois de ser atropelada por um caminhão, e acabaria transmitindo o vírus para o marido e a filha.
Quando Robert e os Schurmann se reencontraram, em 1995, Jeanne já havia morrido, a saúde do neozelandês se deteriorava e ele estava desesperado, sem saber com quem deixaria a filha. Escolheu Heloisa e Vilfredo. "Pensei nos olhinhos dela e em seu sorriso feliz cada vez que me via e, mesmo antes de consultar os meninos, Vilfredo e os médicos, já sabia que havia me tornado mãe de Kat", escreve Heloisa.
O apoio da família foi incondicional. A primeira crítica veio do médico responsável pelo tratamento de Kat. "Nem parentes vocês são!", disse o homem, que deu seis meses de vida para Kat e aconselhou os Schurmann a não entrarem com os papéis para adoção. "Todos nós somos terminais, porque a única certeza que temos na vida é a de que vamos morrer. O duro é que os médicos continuam fazendo isso com as pessoas."
A rotina da família teve de se adaptar às necessidades de Kat. Apesar de ela precisar de remédios difíceis de encontrar e infusões de imunoglobulina para melhorar as defesas do organismo, os Schurmann deram a volta ao mundo, refazendo a rota de Fernão de Magalhães. Kat tinha 8 anos e ficou 912 dias no mar; visitou 44 países; além de falar português e inglês, aprendeu espanhol.
Heloisa buscava médicos em cada porto. Por duas vezes, na Ilha de Samoa e na Indonésia, recusaram tratamento para Kat. Com contatos com médicos na Grã-Bretanha, descobriu um pediatra que atendia soropositivos.
"Mais que uma história sobre HIV, é uma história de vida. Ouço pais de crianças diabéticas ou com intolerância alimentar que não viajam, mal saem de casa. Há possibilidades abertas a todas as crianças. É preciso lutar. As pessoas às vezes colocam um ponto final antes do tempo."
Kat escreveu seis diários. Ali, contou sobre a paixão por Lucas, um colega de escola, como se sentiu ao descobrir que tinha aids, as alegrias nas viagens. Mas também relatou os preconceitos que sofria por ser mais baixa e por ter dificuldade para andar - efeitos da medicação que tomava.
"As crianças muitas vezes são cruéis. Cada mãe tem um desafio, que é encontrar aquilo que faz do seu filho especial. Para Kat, eu lembrava do quanto ela era corajosa, enfrentava tempestades em alto-mar. Se a criança se sentir amada incondicionalmente, sem diferenças, ela vai encontrar um lugar para ela no mundo", diz Heloisa, para quem a filha deixou uma lição do que é "desapego".
"Os filhos não são nossos. Você tem de criá-los para a vida. O mais difícil é o desapego espiritual. Esse, ainda estou aprendendo."
Clarissa Thomé