Milei e os argentinos - Daniel Camargo
Neste mês de maio de 2024, completam-se seis meses do improvável governo de Javier Milei à frente da Argentina, e figurou, inclusive, na capa da Revista Time. A última vez que um argentino estampou a revista foi em 2012, com o Messi, que ganharia a copa do mundo 10 anos depois.
A era Milei vem cumprindo parte do que prometeu em campanha e posse, depois de herdar uma Argentina na UTI: “as coisas irão piorar antes de melhorar”, e apesar disso, para a surpresa de muitos, inclusive a minha, e sobretudo, a do FMI, o governo está lidando com uma improvável estabilidade, enquanto aplica as suas reformas.
Os números estão longe de agradarem. Se não, vejamos: O produto Interno bruto registrou, em abril, uma acentuada queda de 8,4% comparado ao mesmo período do ano passado; o consumo das famílias já reporta 13% de declínio e a produção industrial cai espantosos 21%, com destaque para a construção civil, que se reduz a quase metade do seu tamanho, com a paralização de todas as obras públicas, tudo isso a um custo de mais 100 mil desempregados, e o Peso nunca valeu tão pouco quanto hoje. É inegável que os argentinos estão, agora, em quadro mais crítico do que em dezembro, na posse do Milei. E pesquisas dão conta que os próprios argentinos sentem que sua situação não irá melhorar nos próximos meses.
Ora, se é essa a tela que se pinta, como se explica, então, a improvável estabilidade? Como o Milei consegue dormir em paz, se a nenhum dos seus predecessores, que tentaram medidas até mesmo mais brandas, foi outorgado um sono tranquilo? De La Rua, o reformista, fugiu de helicóptero da Casa Rosada, seis presidentes foram depostos em duas semanas, Macri não fez bom mandato e nem sucessor. O legado peronista nunca permitiu um presidente não-peronista fazer governo na Argentina. Exceto agora (até agora).
Enquanto analistas, comentaristas, cientistas-políticos, mesas de bar, se debruçam em soluções improvisadas, ou a jogam para a posteridade, a resposta que procuram para as ruas vazias talvez esteja na outra capa da revista Time. Ele mesmo, Messi, que em
Dezembro de 2022, no plano de fundo da posse do Milei, fez da Argentina tri-campeã mundial, em Doha, depois de 36 anos. A última conquista havia sido em 1986, comandada por Maradona.
Inusitado à primeira vista, validado pela História: Em país vizinho, trinta anos antes da taça levantada por Messi, havia uma população impaciente com uma inflação galopante, desconfiada de um governo que havia confiscado suas poupanças, com instituições jovens e abaladas por um processo de impeachment e tentando testar um plano novo, ousado, feito por um sociólogo, que o chamou “Plano Real”. A parte mais hercúlea do Plano era convencer a população à nova moeda, essa mesma população impaciente e desconfiada. A previsão era de fracasso, assim como os seus predecessores: plano Cruzado, Plano Verão, Plano Collor. A estimativa para a nova moeda era julho de 1994, antes das eleições. Naquele mesmo mês, a seleção brasileira, após 24 anos de espera, sagrava-se tetra- campeã mundial, derrotando a Itália, nos Estados Unidos. A paixão e o orgulho nacional afloraram, a impaciência e desconfiança deram lugar aos gritos de euforia e o plano Real foi lançado com aceitação recorde e rápida, para a surpresa dos próprios arquitetos da moeda. O Pai do Real passeou nas eleições e tornou-se presidente da República ainda no primeiro turno.
Corta para 2002: Brasil e Argentina, contaminados por uma crise que se originou na Asia, viram suas moedas implodirem e a pobreza disparar. A transição política na Argentina, de um governo liberal para um modelo alternativo foi, como já mencionado nesta crônica, de uma turbulência traumática. Já o Brasil fazia a transição para um governo de Esquerda de forma diametralmente oposta: de forma pacífica e em clima de festa. O plano de fundo da transição brasileira foi o penta-campeonato da seleção de futebol, conquistado no Japão.
O futebol, que já legitimou Videla, Emílio Médici, o Plano Real, o governo Alfonsin, volta à ante-sala da política latino-americana. Por aqui, seu poder de galvanizar os povos sempre permeou os processos históricos e encontrou uma Argentina e uma época de desespero e baixa autoestima, ansiosa por mudanças, uma alternativa improvável e uma festa de copa do mundo, e o universo conspirou para o governo eleito. Há padrões que apontam que o melhor ministro do Milei, na Casa Rosada, é o Messi.
Autor: Daniel Camargo é economista, consultor de várias empresas para assuntos de economia e negócios e colaborador deste blog.